‘Vida era um teatro e só eu não tinha script’, diz jovem com TEA; laudo pode ser decisivo para se entender e viver melhor

Saúde

Uma forma diferente de enxergar o mundo ainda hoje pouco compreendida pela sociedade em suas especificidades e necessidades. Entender as interações sociais, adaptar-se ao ambiente e se encaixar nos padrões comportamentais é mais complexo do que para a maioria das pessoas.

Essa é a realidade de quem vive com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma condição do neurodesenvolvimento com início na fase infantil e sintomas característicos ao longo da vida.

Por conta do TEA, algumas atividades básicas do dia a dia se transformam em um verdadeiro desafio. Como é o caso do profissional de Tecnologia da Informação, Yuri Nóbrega, 27, que recentemente foi diagnosticado com autismo nível 1 de suporte. “A sensação que eu tive a vida inteira era que eu estava em uma peça de teatro. Eu vivia em uma peça e todo mundo tinha um script, menos eu”, desabafa.

O jovem relata que desde cedo teve dificuldades em fazer amizades e se comunicar. A sobrecarga com o ambiente devido à ruídos, luminosidade, e outros fatores externos causavam crises. Para lidar com tantos estímulos ao mesmo tempo, o corpo manifestava estereotipias, que são comportamentos repetitivos como forma de autorregulação.

Aos 8 anos foi diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) pelas crises que tinha e a de interesse em algumas disciplinas na escola. Não porque não gostaria de aprender, na verdade, se esforçava até demais, mas a dificuldade era tamanha que lhe causava exaustão. Em compensação, era excelente em outras matérias.

Dentre algumas lembranças mais marcantes da infância de Yuri estão o hiperfoco em videogames, computadores e desenhos que assistia repetidamente. Uma característica do autismo, que projeta “obsessões” por determinados temas no indivíduo.

Com o tempo, aprendeu a disfarçar as estereotipias mais evidentes pelo receio de julgamentos e na tentativa de se encaixar socialmente. “Fui crescendo e assimilando a capacidade de imitar as pessoas, que no autismo é o ‘masking’. Você mascara alguma estereotipia sua porque as pessoas têm uma visão diferente sobre o que você está fazendo. Dentre os mais comuns estão o balançar das mãos, andar na ponta do pé, mexer demais a perna, e outras formas de se regular”, explica.

autismo yuri nobrega

Por conta do hiperfoco em computadores, hoje Yuri trabalha com TI. 

Na adolescência, surgiu o interesse por relacionamentos. Yuri pesquisava como conversar com as pessoas e iniciar uma interação, algo que, para outras pessoas, é natural. “Quando comecei a trabalhar, as crises ficaram mais aparentes. As pessoas tinham mais contato comigo no dia a dia e aí não tinha mais como me esconder e nem ficar fingindo ser alguém que eu não sou”, relembra.

O incentivo para a busca pelo diagnóstico clínico partiu da esposa de Yuri, que também tem autismo e notou no companheiro os comportamentos que caracterizavam as estereotipias.

Quando recebeu o laudo, ficou aliviado. “Tirei um peso das costas, mas senti um pouco de frustração também, porque a sensação que tive era que o tempo todo eu não estava em equidade com as pessoas e mesmo assim estava agindo como se eu não tivesse meus limites a vida inteira, me forçando a atender expectativas e passei por muita coisa à toa. O diagnóstico foi libertador, entendi muita coisa sobre mim, sobre a minha infância”, recorda.

Avaliação e diagnóstico

O Brasil enfrenta ausência de informações e dados atualizados sobre o autismo, sendo que um dos últimos relatórios que se tem notícia é de 2010, e vem de um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) que cita o país como tendo, naquela época, aproximadamente 2 milhões de pessoas com autismo.

Psicóloga Geise Ramos Machado

Contudo, atualmente um entendimento de que os casos de autismo têm “aumentado” vem se difundindo, o que, na realidade, pode ser reflexo da procura por atendimento médico e diagnóstico, já que até poucos anos atrás informações sobre o TEA não eram tão acessíveis.

Conforme a psicóloga Geise Ramos Machado, não existem causas definidas para o autismo. Contudo, uma série de fatores genéticos e ambientais interagem para o surgimento dos sinais.

De acordo com a especialista, o diagnóstico clínico é realizado de forma multidisciplinar para investigação de sintomas por entrevista com familiares e cuidadores sobre o histórico de desenvolvimento e rotina da pessoa, bem como histórico familiar. O mais indicado é a avaliação neuropsicológica.

“Essa avaliação analisa funções cognitivas como memória, atenção, linguagem, funções executivas, entre outras. Com essas informações é realizado o mapeamento cognitivo do paciente para identificar habilidades e dificuldades, verificando, assim, áreas que, futuramente, serão foco de intervenção clínica”, afirma.

Autismo em adultos
Embora seja comumente identificado ainda na infância, adultos também podem ser diagnosticados, mesmo após anos sem saber que possuem a condição. A psicóloga Geise percebe que muitos pais e familiares de autistas têm buscado pelo laudo após conviver com alguma criança que possui características evidentes do autismo.

É o caso do jornalista Ulisses Lalio, 36, que teve diagnóstico tardio de TEA após procurar, juntamente da esposa, uma avaliação de Álvaro, o filho pequeno do casal, que tem 5 anos, mas até os 3 anos não falava.

 Jornalista Ulisses Lalio com o cordão de identificação enquanto trabalha. 

Ulisses relembra que só formou as primeiras frases aos 7 anos e por toda vida sentiu dificuldades na comunicação, socialização, tinha sintomas de hipersensibilidade, além de estereotipias latentes, algo identificado pela psicóloga do filho do jornalista há cerca de dois anos, quando investigavam a condição do pequeno.

Álvaro recebeu laudo com nível 2 de suporte e Ulisses nível 1. “O autismo é um espectro classificado em 3 níveis de suporte atualmente. Nível 1 de suporte que não demanda tanta ajuda, porque todo autista vai depender de alguma forma, em algum nível. No nível 2 depende um pouco mais, e o nível 3 é totalmente dependente”, explica Ulisses.

Também na infância e outros momentos em que sofria com estresse, Ulisses teve crises que ocorriam devido à sobrecarga de estímulos e resultaram no meltdown ou no shutdown. “Quando a gente passa do limite vem as crises. Tem autistas que tem meltdown, que são crises explosivas, que a pessoa sai gritando, não consegue se regular e chora, mas tem também o meltdown, que são as crises internas, os desligamentos”, descreve.

Com o diagnóstico, muita coisa fez sentido em seu entendimento sobre si, mas também possibilitou maior amparo em suas dificuldades. Ulisses buscou formas de adaptar seu dia a dia para ter uma qualidade de vida melhor. Dentre algumas das formas estão manter aplicativos para se lembrar de tomar água, alimentar-se e outras funções, pois não sente fome e sede com frequência.

Outro item inseparável é o fone abafador de ruídos, que auxilia em sua concentração durante o trabalho e atividades que exigem mais foco.

Hoje em dia ele escreve para o jornal impresso A Gazeta, o formato jornalístico em que melhor se adaptou na rotina de produção diária. Além do hiperfoco na profissão que exerce, outros temas de seu interesse são as navegações para a Antártida, pinguins e motorhomes, que adora pesquisar e ler a respeito.

Desinformação e preconceitos

Devido à falta de acesso ou interesse da sociedade pela busca da informação correta e científica, ainda hoje pessoas com autismo enfrentam preconceitos e estigmas associados à desinformação. Tanto Yuri quanto Ulisses já receberam comentários capacitistas, mesmo quando utilizam o cordão de quebra-cabeças, símbolo da conscientização pelo autismo e uma forma de identificação para quem convive com as chamadas “deficiências não visíveis”.

Contudo, mesmo utilizando a sinalização, Yuri relata que já sofreu discriminação quando estava na fila de um supermercado e teve sua vez ignorada durante o atendimento do açougue por uma atendente. Ulisses disse que frequentemente vê comentários nas redes sociais ou durante o dia a dia de pessoas que tentam invalidar o diagnóstico ou falam que “hoje em dia tudo é autismo”, atitudes que precisam ser combatidas com cada vez mais informação.

Além de compreender o diagnóstico e não banalizar, o apoio da família às pessoas com autismo é fundamental no enfrentamento aos desafios diários e também no fortalecimento da rede de proteção. Segundo a psicóloga Geise, é necessário que a conscientização sobre autismo ocorra de forma constante durante todo o ano.

“Quando as campanhas acabam junto ao mês de abril, o autismo permanece. A aceitação do diagnóstico e a orientação sobre o assunto são essenciais para haver um convívio familiar harmônico, possibilitando o fortalecimento de vínculos entre membros dessa família, onde todos se apoiam e se ajudam diante das afrontas da sociedade. Cada um deve fazer a sua parte tendo consigo o princípio do respeito, empatia e solidariedade”, ressalta a psicóloga Geise.